Montra
de histórias

Exposição

Programa do concerto dirigido pelo maestro Pedro de Freitas Branco, com a pianista Marie-Antoinette Lévêque de Freitas Branco e a violinista Leonor Alves de Sousa, 20 de dezembro de 1941

O Coliseu do Porto ou a ca(u)sa da música

Luís Cabral *

Quem desce da parte alta da cidade logo se encontra com esse espaço de privilégio que é o Coliseu do Porto, a que chamamos, com o afeto que pomos nas coisas que são nossas, apenas o Coliseu.

Longe ficaram as memórias do Teatro do Corpo da Guarda (1760). Por ali talvez se ouçam ainda os ecos de uma Luísa Todi em começo de carreira ou quase perdida no desastre da Ponte das Barcas. Ou então do Real Teatro de São João (1798), onde desfilavam, século XIX adentro, camilianas cantoras como as rivais Dabedeille e Belloni.

Na central rua de Passos Manuel, a cruzar-se com a cosmopolita Santa Catarina, não faltará gente por entre lojas, restaurantes e cafés para gostos e bolsos vários, como o ”petit restaurant” Escondidinho (logo em 1941 abre uma residencial no próprio edifício do Coliseu) ou o luxuoso Café Majestic. Um pouco mais além, ficam os Teatros Rivoli e Sá da Bandeira, também eles espaços de grandes tradições, o segundo gerido por Arnaldo Moreira da Rocha Brito, que foi o empresário do Coliseu, entre 1941 e 1949.

Naqueles tempos, fins dos anos trinta e princípios de quarenta, o Porto, ainda que indiretamente, era afetado pela Guerra Civil de Espanha e pela II Guerra Mundial. Surge, então, como que em contraciclo, o enorme esforço de investimento da Companhia de Seguros Garantia. Era este, porém, um período de intensa atividade no meio musical portuense.

Bem ao lado do Cinema Olympia, é sonhado e erguido o Coliseu do Porto, sobre o espaço e as memórias do Salão Jardim Passos Manuel, as suas tradições de cinema, music-hall, concertos, a sua orquestra privativa, um elegante ponto de encontro cultural e social. Era o Porto uma cidade que, sem descurar o trabalho e os negócios, progressivamente se voltava, ou se moldava, às Artes.

Diálogo de andorinhas: desenho publicado em O Primeiro de Janeiro, 1941 · António Cruz Caldas

Requeria o novo recinto toda uma programação de qualidade, inovadora, grandiosa e mesmo espetacular, a responder às expectativas de um público numeroso e variado. Aquilo tudo surpreendia! Como diziam, uma para a outra, as duas andorinhas bem-humoradas desenhadas por Cruz Caldas, ao sobrevoar o Coliseu:
“– Olha! Olha! Viemos parar a Nova York!!!
– Vê-se logo que não lês os jornais!... Estamos no Pôrto!...”
Não era só a grandiosidade da casa, seria tudo o que se passava dentro dela.

É verdade que se sentia e sente no Coliseu a presença de uma espécie de linha condutora ou ADN em matéria de Música.

Antes de “percorrer” a preciosa coleção de programas, cuidadosamente guardada no Coliseu, é tempo de nos centrarmos nos dias inaugurais, 19 e 20 de dezembro de 1941. Foi esse um tempo de festa, com dois espetáculos, um mais formal ou sarau de gala, a 19 de dezembro, e outro, no dia imediato, com ”preços populares – traje à vontade”, como anunciavam os jornais. Abria-se, assim, a casa a todos os públicos, durante os 75 anos hoje, felizmente, celebrados.

Os dois concertos contaram com a participação da Orquestra Sinfónica Nacional (também designada por Grande Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional). Foi o maestro Pedro de Freitas Branco quem a dirigiu, dando, no sarau inaugural, as simbólicas pancadas de Molière, como era de uso na abertura dos espetáculos teatrais.

Pedro de Freitas Branco era figura bem conhecida e querida do público do Porto. Bastará lembrar, por exemplo, o memorável concerto com a Orquestra dos Concertos Sinfónicos de Lisboa, a 10 de abril de 1930, no Teatro de São João, em que foi solista Guilhermina Suggia, por sinal o último espetáculo a que assistiu Augusto Suggia, seu pai, primeiro mestre e “gestor de carreira”.

Na noite de 19 dezembro de 1941, o sarau de gala, que foi seguido de um baile de beneficência, teve como principal solista  a pianista Helena Moreira de Sá e Costa, que interpretou o Concerto n.º 1 em sol menor, op. 25, para piano e orquestra, de Mendelssohn. Participou, também, neste concerto a cantora Maria Amélia Duarte de Almeida, que teve a seu cargo os solos da cena final de Salomé, de Richard Strauss.

Cartaz, 1959

Valerá a pena ler um pouco do que publicou O Comércio do Porto (20 dez. 1941), um dos quatro jornais diários que o Porto tinha, à época. Sobre Helena Sá e Costa: ”A distintíssima solista, prodigiosa na exteriorização dos seus muitos dotes de pianista recreou a obra mendelssohniana, exprimindo-lhe, maravilhosamente, tôda a delicadeza da contextura. A colaboração da orquestra fez realçar a parte de piano, em que a execução e a interpretação se aliaram para nos deslumbrar.” Sobre Maria Amélia Duarte de Almeida: ”Voz extensa, límpida e brilhante em todos os registos, a do excelente soprano lisbonense valorizou, notavelmente, a obra de Strauss, de que Freitas Branco fez evidenciar tôda a amplitude dos planos sonoros.”

Do programa deste concerto constaram, também, as obras “A Consagração da Casa”, de Beethoven, “Gaiteiros”, de Alberto Fernandes, “Morte e Transfiguração”, de Richard Strauss, “Dois Nocturnos”, de Debussy, e “Tango”, de Júlio César Sonzogno.

No concerto do dia 20 de dezembro apresentaram-se a pianista Marie Antoinette Levêque de Freitas Branco e a violinista Leonor Alves de Sousa. O mesmo jornal publicou no dia seguinte: “Leonor Alves de Sousa, que é hoje, talvez, a nossa melhor violinista provou bem, perante um auditório que se entusiasmou a valer, que o seu aturado trabalho de aperfeiçoamento tem sido o mais frutuoso possível.” “A outra solista do concerto, Marie Antoinette Levêque de Freitas Branco, foi também saudada com notória intensidade de aplausos pelo modo porque tocou a Rapsódia Portuguesa, de Ernesto Halfter.” Do programa deste 2.º concerto fizeram, igualmente, parte “O Falso Profeta”, de Júlio Nascimento, “Sardana”, de Juan Manén, “Suite Alentejana”, de Luiz de Freitas Branco, “O Galo de Oiro”, de Rimsky--Korsakow e “La Valse”, de Ravel.

Notemos que Helena Sá e Costa ficará, artística e simbolicamente, ligada para sempre ao Coliseu. Aqui voltou a atuar a 29 de abril de 1959 na 1.ª série dos Concertos Sinfónicos da Primavera, com a participação do violinista Henri Mouton. No cinquentenário do Coliseu (1991) atuou com o seu discípulo, Pedro Burmester, e a figura da grande professora e pianista foi alvo de uma significativa homenagem no momento dos 70 anos da abertura do Coliseu (2011). Tomemos agora, como mero exemplo da longa vida do Coliseu, a temporada de ouro de 1950/1951, pois o tempo e o espaço mais não autorizam.

Em fevereiro de 1950, com grande aparato publicitário, é apresentado o mítico maestro Pierino Gamba (14 anos), a que se segue, logo em maio, um outro “fenómeno” de maestro criança/adolescente, Roberto Benzi (13 anos), proposto ao público como “incomparável génio musical em corpo de criança” ou ”o mais extraordinário, o maior de todos – um milagre deste século”. Um e outro se apresentaram à frente da Orquestra Sinfónica do Conservatório de Música do Porto, ainda recentemente formada.

Em maio-junho e em novembro desse mesmo ano, o Coliseu apresenta  a Grande Orquestra Sinfónica de Praga, sob a direção de Klemens Krauss.

A década de 1950 é também a do Ballet Internacional do Marquês de Cuevas (maio-junho de 1959) como que a prenunciar o que, anos depois, em 1968, constituirá um dos momentos mais inesquecíveis do Coliseu: The Royal Ballet, com Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev.

O Coliseu, em maio de 1951, recebe o Orfeão de Pamplona e, em outubro seguinte, o maestro Leopold Stokowsky, dirigindo a Orquestra Sinfónica Nacional.

Aqui deixamos alguns exemplos, muito poucos, de um  fabuloso desfile de artistas desde os de elite, diga-se assim, até aos mais populares, sejam do domínio da Música, nos seus diversos ramos, ou das outras artes do espetáculo: ópera e dança, teatro e cinema, circo…

Um voto final: que este novo tempo faça sempre ressurgir, com a energia da fénix, o Coliseu do Porto, um Coliseu para o Porto.

* Texto escrito para o catálogo publicado por ocasião da exposição comemorativa dos 75 anos anos do Coliseu Porto, “O Coliseu e a Cidade: 75 anos de histórias”, apresentada no edifício dos Paços do Concelho, de 15 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.