Montra
de histórias

Exposição

Ação de promoção de "O dia mais longo", 1963

AMARCORD no Coliseu

Bernardo Pinto de Almeida *

“Quando a infância era a infância...”, assim começa o belo recitativo de Peter Handke que serviu de base ao mais conseguido filme de Wim Wenders, As Asas do Desejo, e assim apetece começar um breve encadeado de stills a fixar memórias de uma adolescência longínqua, onde o Coliseu era referência permanente.

Aos 10 anos, quando cheguei ao Porto, vindo de um Douro agreste, vertiginoso de imagens que só o Senhor Manoel de Oliveira soube representar na sua grandeza verdadeira, ainda próximo, então, daquela longa realidade rural que impedira a entrada plena do país no século XX, e nas suas revoluções técnicas, que o regime a todo o custo procurava impedir, o que mais me impressionou foi, porventura, a descoberta emocionada do cinema.

"Música no Coração", 1966-1967

O resto já conhecia das deslocações familiares mais ou menos regulares, cinco ou seis horas de carro pela estrada velha, que vem ainda por Mesão Frio, depois subindo junto à escarpa até ao Alto de Quintela, e de aí para baixo, por Amarante e Penafiel, até desembocar no Porto, atapetado a granito e molhado da chuva miúda. Assim, então, a longa viagem, iniciática a seu modo, em que se preparava cedo merenda farta, para consultar médicos, quando se pensava necessária opinião mais douta num qualquer tratamento. Ou para os dois sagrados meses de praia, no belíssimo areal doirado da Aguda, onde vetustos tios guardavam casas enormes, dispersas pelas estradas circundantes, paralelas ao mar, entre a mais sofisticada Granja e a moderna experiência arquitectónica de Miramar, a esboçar uma espécie de pequena Califórnia feita a norte.

Sala de projeção, sd

Visitas que não prescindiam de passagens mais ou menos breves pelo Porto, para ir às modistas, ao cimo da Passos Manuel, chegando aos Poveiros, renovar guarda-roupas em primeiros andares silenciosos, atafulhados de sedas, tafetás e fazendas, depois de um almoço à francesa n’Os Três Irmãos, logo junto ao Rivoli. Ou de passagens estonteantes pelos bazares luminosos da Sá da Bandeira, o Londres e o Paris, à guisa de prémio de bom comportamento em final de ano lectivo, onde os olhos da criança se espantavam com tanta luz a tornar feérico o desfile das miniaturas automóveis, dos jogos e dos brinquedos vários, que em Lamego ou na Régua não podiam sequer imaginar-se. Isto, antes do lanche ritual na Arcádia ou na Atheneia, pela mão das avós chegando à dobra dos Clérigos. E prévio a regressar para cima, para lá do Marão, a enfrentar de novo o frio em excesso ou o calor em demasia do Douro, onde a soberana paisagem nem deixava imaginar haver cinemas nem filmes, que lá, não sendo necessários por tanta imagem oferecer sem grande custo a natureza, eram tão raros como os filmes que chegavam, muito de vez em quando.

O que tornava pois o Porto mais moderno, mais apetecível a quem queria chegar depressa a adolescente, e assim fazer o entendimento mais rápido do mundo — porque no resto, também as suas ruas eram então praticamente em socalcos, como as vinhas lá de cima, e o povo era ainda mais triste, mais soturno, apesar de andar calçado — era a possibilidade do cinema.

E o resto, eram os passeios calcorreando a pé pelas estreitas vielas, ainda medievais, da Sé ou da Ribeira, com as roupas a secar caindo das varandas como ainda se vê no reino de Nápoles, as descidas até ao rio, as passagens furtivas, ansiosas, às horas ‘da saída’ junto ao Liceu da Rainha Santa, ao fundo da rua do Bonfim, de onde as jovens raparigas em flor saíam em bandos, gorjeando risadas frescas, quais modelos em passerelles, ou os sábados lentos a subir e a descer, com vagar, a Santa Catarina, que o tempo sobrava para tudo e que, talvez em reflexo da presença inglesa na cidade, ecoava vagamente de uma Carnaby Street de província, com as lojas de roupa mais ousada, os perfumes da Loja Confiança e os chocolates com churros no Majestic, colado mesmo à Fotografia Alvão. Era uma pasmaceira.

Fachada do Coliseu durante a projeção de "A queda do império Romano", 1964

Mas o cinema lavava-nos os olhos. E o cinema era, majestosamente, o Coliseu. Símbolo indomável. Presença um tanto ou quanto futurista a recortar-se contra o céu enevoado pelos fumos fabris, que rimava, em gosto moderno de metrópole, qual fortaleza ao cimo da colina, com o belo edifício modernista do Palladium, um pouco mais abaixo.

Também ali ao lado, a fachada art-déco outrora delicada e feminina do Olympia, pintada de um rosa pó-de-arroz era, em parte, apelativa. Parecia uma casa de bonecas que ali simplesmente envelhecera, menina sempre. Mas a programação manhosa, ao encontro da frequência pouco mais do que lúmpen de sopeiras gordas e magalas magros, não chegava para gerar entusiasmos, convicções, apelos. O Batalha, belíssimo e moderno, era uma montra de tentação perpétua. Um pouco snobe, talvez, no gosto modernista e nervoso da fachada caprichosa que exibia. Servia mais, então, às matinés do Cineclube do Porto — que tinha a sede mais modesta à entrada da Rua do Rosário, face ao Carregal — e onde o Senhor Henrique Alves Costa, com a risada larga e a passada urgente, fazia tanto por nós todos como Henri Langlois em Paris, na Cinemateca do Trocadéro, fizera pelo povo de França. Mas ninguém se lembrou de dar o seu nome a uma praça decente, como fizeram decerto os franceses com os seus programadores.

O Trindade, magnífico, a resguardar a praceta mesmo por trás da Ordem Santíssima, guardava-se para quando se ia espreitar mais tarde, aos bailes dos Fenianos, o ritmo das danças populares. E havia, também o Águia d’Ouro, de braço dado com o Batalha, como se seu avô, que fora cine-teatro e lugar mundano, mas era agora, já na velhice mais apropriado para westerns, e o São João, cuja bela arquitectura de gosto novecento era regalo para os olhos logo à entrada, e era mesmo próprio para ir ver um cinema mais elegante e burguês. Ou o digníssimo Rivoli, dominando a praça do Bacalhoeiro, cujo baptismo italiano propiciava aos concertos do Círculo de Cultura Musical, cuidadosamente arrumados nos domingos de manhã.

Mas o cinema, esse era no Coliseu. Mesmo a preto e branco, os filmes pareciam sempre em technicolor, tão largo e generoso era o ecrã, tão magnânimo o espaço, e tão panóptica a perspectiva cavaleira de quem, passando para lá da Tribuna como se passasse a Taprobana, e subindo sempre como se ao Evereste, qual caminho para uma nova Torre de Babel, chegava, um pouco arfante, ao ‘Galinheiro’ — o amplo balcão popular que, por vinte e cinco tostões, ou menos, fornecia miúdos e graúdos ali sentados sobre o cimento como num coliseu à séria, daquele manancial de imagens. As que vinham das Civilizações antigas, com Ben-Hur, ou a épica modesta dos peplum, com leões que rugiam mais do que os que paravam no de Roma. Ou que se pressentiam no esvoaçar de Mary Poppins sobre os telhados de Londres, e mesmo até naquela resistência corajosa e comovente ao Nazismo, que se percebia na fuga alvoroçada da família Von Trapp quando, em longa fila de crianças com o pai viúvo a comandar, atravessava, pela mão firme da governanta tornada noiva, os Alpes pastorais a cantar Edelweiss, deixando para trás a barbárie com o coração cheio de música.

Chorava-se baba e ranho naquele aglomerado de emoções que só um Coliseu poderia acolher, e percebiam-se movimentos amorosos na penumbra, gestos de ousadia que o pudor jamais permitiria às claras, no bulício das ruas. Aqueles que, sob sons abafados, um olhar furtivo lançado até às filas mais atrás surpreendia, aconchegando-se em namoros de ocasião que as luzes do ecrã de repente iluminavam, e selados num beijo que rimava esplendoroso com os do filme, em descoberta surpreendida, ansiosa, dos desejos da carne.

O Coliseu era o cinema do povo e, como tal, servia ao encontro e ao desencontro, à emoção fácil e à descoberta dos rituais humanos, às gargalhadas e às lágrimas, às risadas de amigos depois da clandestina fuga às aulas e às passagens pelo bar amplo que, em baixo, junto à plateia, tornava outra vez indistintas as classes que o frequentavam, e se arrumavam por pisos, como nos comboios.

E servia até para ver cinema.

O povo do Porto amava o cinema e, embora claramente preferindo o grande Coliseu, enchia todos os seus templos, distribuindo pelos vários que havia gostos e emoções de estirpe vária, e ali aprendendo como quem vai à Missa, a sua cultura fácil, imediata, a inimitável moral das coboiadas. E tanto era assim que, pouco depois, como quem gerasse um filho e um herdeiro, o Coliseu criou o Cinema Passos Manuel, pequeno e sofisticado estúdio que vinha dar as boas-vindas a um público já cada vez mais informado pelos cineclubes e desejoso de ver o que se chamava ‘cinema de arte e ensaio’, que era afinal exactamente como o outro, mas mais seco. Ali fui ver, pela primeira vez, esse filme admirável de Rossellini que é “A Tomada do Poder por Luís XIV’ ou o “António das Mortes”, de Glauber Rocha, inesquecível, ou “O charme discreto da burguesia,” de Buñuel, ou a “História Imortal” do imortal Orson Welles, ou “Jerry 8 e ¾” de mestre Jerry Lewis, ou talvez os primeiros Pasolini, numa programação de luxo que fazia da cidade um cineclube aberto, disponível e sensível aos múltiplos gostos que a habitavam, ao mesmo tempo já uma pequena sinalização dessa Europa com que se sonhava e que se desejava nossa por direito.

Foi pois desmerecido desse amor, o bom povo do Porto, quando lho tiraram, ao cinema, já mais tarde, na democracia, para o vender antes em shopingues, servido em salas cheias de ar condicionado, onde se escuta mais alto o som das pipocas esmagadas por dentadas nervosas do que as explosões do Exterminador Implacável. Foi assim aliás que começou por toda a Europa a conquista americana que ainda não acabou. E o Coliseu foi ficando abandonado daquela explosão de imagens para que se tinha feito. Pois até mesmo o circo hesitava agora em frequentá-lo.

Fez mais pelo Porto o cinema do que muitas autarquias, como factor de civilização e de gosto. Aprendia-se ali a fumar, a conduzir com o braço pousado sobre a janela aberta do automóvel, a usar lenço na cabeça para as senhoras, ou casacos aos quadrados e chapéus, aos cavalheiros, e a conviver com as belas estrelas que desfilavam nos filmes, e com quem se aprendia a acertar o passo mais firme, mais mundano, quando se voltava às ruas. Às vezes para uma ceia tardia, no Palladium ou no Majestic, abertos até tarde.

No Coliseu, porém, e só conto mais esta, tudo era de outra escala e de outra proporção. Quando ali, uma noite vi “Os Pássaros” de Hitchcock, pela primeira vez de muitas, foi a custo que subi pela rua, onde o mais modesto pardal crescia desde a sombra como um agouro de morte.

O tamanho enorme das suas salas, do ecrã, da plateia ampla, das tribunas e balcões em socalcos, chegava para aumentar a tudo de um tamanho muito maior do que a vida.

Era isso o cinema.

* Texto escrito para o catálogo publicado por ocasião da exposição comemorativa dos 75 anos anos do Coliseu Porto, “O Coliseu e a Cidade: 75 anos de histórias”, apresentada no edifício dos Paços do Concelho, de 15 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.