Montra
de histórias

Exposição

Coliseu do Porto: mobiliário dos camarins, 1941, Mário Abreu

En su sitio

Álvaro Costa *

Ter “chumbado” várias vezes a Linguística terá alterado o início desta homenagem ao “meu“ Coliseu. A diferença entre o significado e o significante torna inevitável que me lembre da minha tia Felícia, boavisteira de gema e a minha guia tradicional ao Circo de Natal e aos filmes do ”Pamplinas”, muito antes de vir a saber pelo próprio Johnny Depp que Buster Keaton era o seu actor favorito, e os do “Marcelino Pan y Vino”, muito antes de Joselito se meter em sarilhos...

A viagem fazia-se nos trolley avermelhados e britânicos da minha infância, do Bonfim à Baixa, sempre na parte superior – mania de miúdo – a caminho de uma espécie de “terra de magia”. O seu nome tinha uma gravitas imensa: Coliseu do Porto, que para nós portuenses dos anos 60 bastava como significado. Ainda pequenote, mas já freak, devorava a revista Mundo da Canção, onde plasmado sonhava com os concertos que por ali passavam. Os Wallace Collection, os célebres Vinegar Joe, os grandiosos Elkie Brooks e Robert Palmer. Os anos passavam e o Coliseu tornava-se a casa da música pop-rock e dos eventos. Num deles, o Prémio Maqueta, permitiu-me pisar o palco sagrado pela primeira vez, como MC. Naquele momento, recordei publicamente as pessoas que me tinham ensinado a amar o Coliseu.

De repente recordei-me de vaguear nos bastidores com os Bush, acompanhado pela minha amiga Gabriela. Um backstage sinuoso e labiríntico, perfeito para os vampiros Bauhaus que, com o Nuno Calado e o Nuno Galopim, ajudei a trazer para um dos concertos mais aguardados de sempre; outros momentos me transportam para um símbolo de uma cidade, ajudado a construir pelo seu povo: um titubeante e inseguro Thom Yorke, com uns tais de Radiohead, desconhecidos sob a sombra dos já populares James; a chuva de flyers lançados sobre a plateia durante um concerto dos Cult, pela malta dos Blind Zero; ou os Massive Attack, sob um calor sufocante e tenebroso, absolutamente normal para a minha amiga neozelandesa, espantada pelo ambiente criado pela sua banda favorita e amplificado por um público, o do Porto, em absoluto delírio. O mesmo que tinha recebido os Pixies, surpreendidos com tanta energia que brotava de todos os cantos.

Mas queria lançar uma data: 30 de Julho de 1992, com um Buddy Guy aniversariante, serpenteando pela plateia. No final, encontrei um ainda incógnito Pedro Abrunhosa, o mesmo que apenas dois anos depois se amarraria às portas do “nosso” Coliseu, onde também estive, embora com algemas de plástico que surgiram não sei de onde: nessa noite de Julho, o artista revelava, ainda timidamente, que em breve teria o seu primeiro disco. Regressei aos Estados Unidos, onde vivia. Quando regressei, o país já se espantava com o tal disco, que se chama “Viagens” e marcou o início de uma nova era na música nacional; para mim teria de ser sob o tecto do nosso Coliseu que as Viagens se iniciavam… Magias que o Coliseu tece.

Esteve quase a não acontecer mais, não fosse – de novo – o povo do Porto a “pegar em armas”. A cidade de tantas e significativas revoltas não deixaria que um dos seus símbolos fosse invadido por mãos alheias. Muitos interpretaram mais um “levantamento” da Invicta como uma manifestação arcaica, uma incapacidade de entender o mercado, ou o direito ao empreender. Nada mais errado no seio da mais liberal cidade portuguesa que soube nessa altura dizer “presente!” e defender, como sempre fez, os seus valores. Até porque tinha de continuar a ser o Coliseu da minha tia Felícia, o mesmo onde lá de cima do seu metro e oitenta, Rui Reininho me dedicou uma canção dos GNR, durante o mais grave e doloroso período da minha vida. Onde quer que esteja, a tia Felícia sabe que continuamos a ir ao Circo, ao ballet ou a ver a Ana Moura, en su sitio: no eterno Coliseu do Porto!

* Texto escrito para o catálogo publicado por ocasião da exposição comemorativa dos 75 anos anos do Coliseu Porto, “O Coliseu e a Cidade: 75 anos de histórias”, apresentada no edifício dos Paços do Concelho, de 15 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.