Montra
de histórias

Exposição

Desenho da autoria de Cruz Caldas onde se representa o átrio do Coliseu durante uma noite de ópera lírica, em 1945. Nas duas anotações a lápis o ilustrador identifica o empresário do Coliseu Rocha Brito (à esquerda) e a violoncelista Guilhermina Suggia (à direita). [Arquivo Histórico Municipal do Porto]

Mostrar o Coliseu fora do Coliseu…

Eduardo Paz Barroso *

Como mostrar o Coliseu fora do Coliseu? Esta é simultaneamente a pergunta à qual a exposição procura dar resposta e é também a metodologia de um olhar que se materializa agora em imagens, documentos e símbolos. Muitos símbolos que preenchem espaços dando lugar a imprevisíveis sequências de alusão cinematográfica, não fosse o cinema uma das linguagens responsáveis pela aura da sala que dialoga e se interpenetra eloquentemente com a Cidade, desde há 75 anos…

O que importava logo desde o primeiro momento em que começámos a pensar uma exposição, e portanto um acto visual, era escolher um sítio. E um sítio pode ser, mesmo na efemeridade dos discursos que nele se implantam, a coisa mais grave do Mundo. O objectivo era claro: evocar 75 anos de histórias ancoradas na sala de espectáculos, clássica e modernista, da qual o Porto nunca prescindiu.

Mostrar o Coliseu lá dentro era, de certa forma capturá-lo numa redundância. Tal propósito nunca foi uma opção. Esse facto determinou exercícios, variações e declinações fixadas em núcleos temáticos mais ou menos óbvios, que fizeram a rica e generosa vida deste teatro até hoje. Tratava-se de edificar um projecto visual dinâmico e que por ser dinâmico queria e devia sair para fora do edifício do Coliseu.

Desde a altura, há pouco mais de três anos, em que adquiriu um novo ritmo e voltou a demonstrar a sua vivacidade e carisma programático, a Sala de Espectáculos do Porto fez-se contemporânea, e nesse processo (sempre inacabado) fez justiça à sua arquitectura. E foi exactamente por isso que se abriu à cidade e manifestou a determinação em se deixar, novamente, reconquistar por ela. Este trabalho de sedução, cheio de imagens e sonoridades, indicou facilmente o caminho e o método. A exposição veio desembocar no sítio certo: o átrio dos Paços do Concelho. Maior simbolismo não podia haver. Fosse por o lugar representar a excelência do debate público, fosse por ser agora um espaço cultural e artisticamente politizado.

Desde logo por resultar de uma já expressiva tradição de exposições de artes visuais e plásticas. Estamos num átrio (um átrio é sempre uma introdução, uma chave, um acesso), cheio de exposições, com destaque para aquela que evocou o imaginário do ambiente de trabalho municipal de Paulo Cunha e Silva. Este é também um exercício paradoxal em que expor é dar a ler e a ver invisibilidades, uma memória do Coliseu transformada em presente e em objecto.

Um objecto que permite ver muitos cenários, muitos artistas, muitos detalhes, algumas coisas aparentemente condenadas ao esquecimento. E muitos públicos numa transversalidade social e estética que faz do Coliseu um caleidoscópio, com rotações à volta do palco e combinações de gestos e coreografias. E um telescópio, porque através dele vemos as estrelas. Estrelas dos muitos e tantas vezes enormes espectáculos que entretiveram e entretêm todo o tipo de pessoas. Gente de todos os géneros e condições, o que faz desta Casa um laboratório sociológico tutelado por uma ideia cívica. Razões para esta exposição convocar uma máquina da felicidade, uma engrenagem da alegria com um valor único.

Camarotes, 1941, Mário de Abreu

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O discurso da exposição articula núcleos e sub-núcleos que evidenciam o espírito ecléctico das programações e a polivalência do edifício. A arquitectura tem voz própria, mas também se funde com a fotografia nas imagens estilizadas e rigorosas de Domingos Alvão, o silêncio da sala imensa quando a surpreendemos vazia contrasta com a dramaticidade e a exuberância dos concertos. O impresso e as ressonâncias gráficas e tipográficas ressaltam em programas, edições e néons. O mundo dos média e os arquétipos de notícias, as publicidades e as modas, o eco de acontecimentos célebres e de rotinas mundanas, tudo se distribui numa rede de alusões e significados que não passam despercebidos ao espectador. Objectos exclusivos, apontamentos sobre a essência do desenho no projecto do Coliseu convivem entre si e celebram ocasiões de alegria e fruição cultural. Materiais de arquivo revelam como se alicerçou e estruturou este teatro, entretanto feito monumento e património, um documento carismático da mundividência urbana do passado e do presente.

Dois segmentos da exposição merecem também destaque. Um documentário em que arquitectos indissociáveis do que se convencionou chamar “Escola do Porto” comentam a função e o estilo do Coliseu, a sua inscrição na geografia urbana, o misticismo que dele emana. Temos neste registo muitas e interessantes pistas sobre as circunstâncias que fizeram de Cassiano Branco o “ideólogo” de um projecto em muitos aspectos visionário. Mas temos também informações sobre os outros arquitectos que acabaram por ter uma intervenção decisiva. Entre outras questões é muito interessante redescobrir o edifício e as narrativas a que dá lugar como tensão entre personalidades da arquitectura e construtores (de sonhos). E finalmente como, apesar disso, o edifício se impõem com imensa naturalidade à malha urbana, exercendo um efeito centralizador na Rua de Passos Manuel.

O outro segmento reúne excertos de reportagem sobre o momento em que a cidade através das suas instituições políticas, em conjunto com o Estado, empresas, agentes culturais, figuras públicas e muitos cidadãos anónimos, chama a si um teatro que defendeu porque o achou coisa realmente sua, e assim o pressentiu como uma espécie de alter-ego. Esse traço de carácter assimilado pela personalidade do Coliseu permite enraizá-lo no imaginário colectivo com um sentido de pertença ao Porto que dignifica esta nossa cidade que o tem tratado como um dos seus “filhos mais bonitos”.

A pequena componente audiovisual, assumidamente em looping, exerce um efeito metalinguístico: cada um dos vídeos, ao reiniciar sempre que chega ao fim, deixa espaço à fantasia de um eterno retorno do Coliseu a si próprio e, afinal, à capacidade de assegurar o seu destino.

Uma exposição desta natureza é sempre um processo de selecção, um exercício de contenção minimalista, no entanto aqui desdobrado e ampliado para o catálogo. Trata-se de examinar as várias facetas do Coliseu, de o antologiar, de o propagar, através de exemplos que exprimem as possibilidades e concretizações da Casa.

A alusão ao neoplasticismo de Mondrian, evidenciada no conjunto de painéis que propõem ao espectador um ambiente de leitura conotado com a atitude plástica do modernismo, resulta da vontade de entender o Coliseu e as marcas que ao longo da História contemporânea este tem deixado na Cidade e na sua área Metropolitana. Propõe-se assim uma solução emocional para uma colecção de referências que valem pela excelência das figuras, dos nomes, dos protagonistas, em síntese, daquilo que determina e faz com que todos sejam ou tenham sido alguma vez espectadores no Coliseu. Essa aura, afinal o estatuto ímpar da sala que se ergue sobre uma poética das ruínas (de que o Salão Jardim Passos Manuel é um ícone), tornou-se mais densa nos anos mais recentes. O Coliseu reprogramou-se, com uma visão sobre si, sobre aquilo que acolhe e tudo o que o rodeia.

Projeto do hall, 1941, Mário de Abreu

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O Coliseu é uma volumetria transmutada em personagem com razões para acreditar que ninguém abdica dele.

A Beleza, categoria sempre presente no gozo artístico, tem no seu interior, no seu palco, na sala, da plateia à geral, gestos de profunda surpresa. O plano mais massificado e popular assimilado em variadíssimos géneros e estilos musicais existe de forma simultânea e em contiguidade com interpretações mais intelectualizadas destinadas a públicos com distintas vocações de gosto. Não sendo inédita enquanto proposta, esta atitude gere programações e sensibilidades, à moda do Porto. O que equivale a dizer que os portuenses se assumem dentro e à volta da Sala, com uma espontaneidade e uma curiosidade que os tornam actores e catalisadores da admiração e do agradecimento dos próprios artistas de todas as nacionalidades e territórios.

Dotado da característica particular de ser um daqueles teatros onde a universalidade da música, da dança e do circo, fantasioso alter-ego da casa, e agora numa equação muito promissora a ópera, se dirigem a todos, o Coliseu é um instrumento de visibilidade colectiva. Logo, de revelação e consagração, reflecte a crença na liberdade. Interpretada hoje como ambição de futuro, essa liberdade garante um Coliseu líquido, de relacionamento, onde a racionalidade moderna do consumo (neste caso de bens simbólicos) de que fala Bauman, se converte numa estratificação de emoções que iludem e contrariam o acto solitário. Acessível e estratificado, com corredores fluídos, moldando uma ferradura que todos os espectadores lá dentro partilham na sorte de usufruírem um bem comum, e um foyer que muitas vezes se assemelha a uma Ágora ateniense, exerce uma atracção desmultiplicada. Sempre foi assim e assim continuará a ser. Actualizando respostas e renovando propostas.

Nesta perspectiva a exposição sintoniza a Sala e demais espaços e as suas democratizadas mensagens e sonoridades. É pois mais uma atracção que se vem somar às muitas que por lá se foram sedimentando ao longo de 75 anos. E é ainda um mapa de referências às incontáveis comunidades efémeras que ali se reuniram e continuam a reunir. A experienciar, a reincidir, a ritualizar, a debutar….

A exposição promove assim como que uma fraternidade mágica, regista todas as diferenças, acentua o espírito inclusivo que faz deste palco um acelerador de emoções, quais partículas elementares de uma alegria feita ela própria espectáculo e catarse urbana.

No átrio dos Paços do Concelho, transmutado em galeria de exposição, está montada, numa laboriosa relação o mundo do Coliseu com o mundo de cada um. Inquieta e em devir constante, orgulhosa do seu passado e da sua visão do presente, esta grande sala apresenta-se em retrospectiva.

Nenhum teatro se mostra onde quer que seja se não for ocupado e participado, utópico e distópico, preocupado. Essa é a sua caução. Tranquilo e insatisfeito como a sua cidade, o Coliseu apresenta-se aqui enquanto colecção e missão. Afirma-se prolixo e generalista, sem descuidar o particular. Está vivo e deixa-se viver, como a exposição que aqui o interroga e encena. Com a mesma vontade de fazer acontecer que ditou a sua belíssima construção e o transformou num palco essencial.

* Texto escrito para o catálogo publicado por ocasião da exposição comemorativa dos 75 anos anos do Coliseu Porto, “O Coliseu e a Cidade: 75 anos de histórias”, apresentada no edifício dos Paços do Concelho, de 15 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.