
Projeto para o Teatro-Circo Coliseu da Autoria de Cassiano Branco, 1939 [Arquivo Histórico Municipal do Porto]
Inesquecível
Henrique Cayatte *
“A minha arquitectura é fácil de perceber. (...) Espero que também seja difícil esquecê-la.”
Oscar Niemeyer
O Coliseu do Porto é um farol na Cidade do Porto. Tem como habitualmente, nos projectos de Cassiano Branco, uma história repleta de equívocos e peripécias.
Avanços e recuos, muitos autores e o risco de um risco moderno que ainda hoje faz muitos hesitarem na sua classificação. Para uns é art déco, enquanto para outros é modernista da primeira geração com elementos expressionistas.
Em qualquer circunstância, um edifício notável que passados mais de setenta anos da sua inauguração é um dos mais importantes edifícios da arquitectura portuguesa.
Cassiano deixa aqui um legado das suas reflexões, mais estilísticas que funcionais, que sempre marcaram o seu discurso.
Declina aqui, por exemplo, o que tinha tentado "na fachada publicitária” do Cine-Teatro Éden em Lisboa, quatro anos antes, quando opta por uma “fachada publicitária” em diálogo com elementos náuticos e linhas rectas características do seu traço.
As “fachadas publicitárias” permitiam colocar e explorar a comunicação dos grandes telões que anunciavam os espectáculos. E se no Éden o edifício dialoga com a ampla Praça dos Restauradores, aqui Cassiano percebe a pouca largura da Rua de Passos Manuel. Topónimo que partilha com o nome da anterior sala de espectáculos, que iria dar lugar ao Coliseu, e com um espaço de menores dimensões ainda hoje existente.
A necessidade de que o edifício “falasse”, “convidasse”, quem por ali passasse percebe-se no lettering vertical “Coliseu”, destacando-se perpendicularmente da fachada e virado para Santa Catarina. Mas também no corpo central, mais alto, com a sua identificação completa virada para quem desce da Praça dos Poveiros. Busca conseguida de escala e onde se pode identificar outros elementos de remate circulares, um pouco à semelhança das varandas do incompleto “Hotel Vitória” na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Hoje, com o trânsito a fluir no sentido descendente, somos desafiados a ler o que está escrito “ao contrário”, o que não se revela difícil já que o desenho das letras é de tão grande qualidade que o exercício acaba por ser fácil. O Coliseu tem, ainda, esta vantagem única de se poder fruir a sua fachada como poucas. Quase como um desenho à escala real colocado na vertical. Quando subimos ao ”Maus Hábitos”, do outro lado da rua e numa cota alta, a vista é inesquecível. Através das grandes janelas temos o Coliseu que nos enche de emoção de tão próximo que está. Quase ao alcance da mão.
E se no exterior a marca é fortíssima, no interior não o é menos.
Olhar para as plantas da plateia e dos camarotes é adivinhar a amplitude e a sensualidade das linhas que demarcam os espaços. Áreas generosas tanto nas zonas públicas como nas zonas de serviços de apoio. Andar pelos corredores é uma descoberta. Os nossos olhos andam mais rápido que os nossos passos na busca de mais surpresas que surgirão depois de mais uma curva no corredor. A grande sala, esmagadora quando se acede, permite – há magníficas fotografias que o atestam – uma leitura quase total do espaço. Tanto a partir do palco como no sentido inverso.
De qualquer ponto. Talvez uma das melhores salas do país inspirando-se nalguns exemplos que Cassiano visitou e muito na linha de uma época de grandes salas de espectáculos de Nova Iorque como o Carnegie Hall ou o Radio City Music Hall.
O conjunto composto pelos camarotes, pelas tribunas, pelas frisas, pela galeria e pela geral encaixa-se de forma orgânica e natural. Grandes espectáculos de música, bailado, teatro, ópera, circo e ainda cinema têm mostrado a enorme polivalência da sala. Sala que não impressiona apenas o público mas, estou certo, também os artistas que aqui actuam. Registos televisionados de, por exemplo, concertos mostram ainda uma profundidade “cinematográfica” que ampliam não apenas o som mas também o que se vê e a arquitectura, quando é muito boa como aqui, tem esse sortilégio. O de saber criar lugares “mágicos”.
Mas não se pense que este edifício foi obra de um homem só.

Alçado do projeto para construir o teatro-circo, apresentado pela Companhia de Seguros Garantia, 1938 · Engenheiros Reunidos, Lda., José Porto [AHMP, Requerimento n.º 12716/1938, f. 35]
Entre 1937 – data de início das obras e da pintura de “Guernica” por Picasso – e 1939 – início da Segunda Guerra Mundial –, Cassiano foi o quarto arquitecto a participar no projecto. O seu mais importante contributo terá sido a recuperação da caixa de palco e especialmente o desenho da fachada. Não sendo o último, seria o mais importante e a quem se associa a autoria principal. Houve, apesar disso, muitas notícias que, pura e simplesmente, nunca lhe deram a autoria. Antes dele, José Porto esteve efemeramente envolvido, seguindo-se o holandês Yan Wills cujos esboços não foram aprovados. E também Júlio de Brito, que mais tarde colaboraria com Cassiano, viu os seus estudos serem recusados pela Comissão de Estética da Câmara Municipal do Porto. Mas o projecto ainda iria ter mais colaboradores. Charles Siclis – no desenho de candeeiros e portas – e, por último, Mário Abreu nos interiores.
Um ano antes da inauguração abandona o projecto por discordâncias insanáveis com a Empresa de Construção Georges Tombu, sobre a qualidade dos materiais e a técnica construtiva empregue pela empresa construtora, num edifício que viria a demorar 22 meses a ser construído com um custo de cerca 22 mil contos. Cerca de 7 milhões de euros ao câmbio de hoje.
Sobre este conturbado período nas relações entre Cassiano e os restantes protagonistas torna-se essencial revisitar o rigoroso texto de Jacinto Rodrigues no catálogo da exposição “Cassiano Branco uma obra para o futuro”, que teve lugar no Éden em 1991, e que foi editado pela CML e pelas edições ASA.
Entretanto decorre em Lisboa a Exposição do Mundo Português, para que foi convocada a nata dos arquitectos, artistas e decoradores, e em que Cassiano é votado a uma participação menor no acompanhamento da maquette geral do recinto. Um preço que pagou por não ser afecto ao Estado Novo. Poderá ser mito urbano, mas terá então sido colocado na parede de um dos arquitectos afectos ao regime, um cartaz com a frase “não se dá trabalho a Cassianos”.
Pouco mais de um ano mais tarde, três semanas antes da inauguração do Coliseu, a 8 de Novembro de 1941, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa, era inaugurada, pelo arquitecto-chefe de Hitler – Albert Speer – a exposição “Moderna Arquitectura Alemã”, versão portuguesa da “Neue Deutsche Baukunst”. Com ele, na cerimónia, o Presidente da República Óscar Carmona, o Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco e o arquitecto Raul Lino. Salazar não esteve na inauguração. Visitou-a no dia seguinte.
A revista de propaganda germanófila, “Signal”, editou as imagens do catálogo e noticiou o acontecimento. Era um período conturbado, de medo, em que Portugal procurava (sobre)viver de acordo com o seu estatuto de hipócrita neutralidade.
Nesse 19 de Dezembro de 1941, dia da inauguração, Hitler é nomeado Comandante em Chefe do Exército alemão. Três dias antes o cerco a Moscovo, pelas forças alemãs, tinha sido interrompido. A Segunda Guerra Mundial atingia um momento crítico e o seu curso iria virar a favor dos aliados.
Mas o momentum era ainda de élan das forças do Eixo e na cerimónia a actriz Aura Abranches – como citado em várias fontes coevas – via o seu discurso ser interrompido por uma assistência de mais de 3000 pessoas que aplaudiam freneticamente o nome de Salazar e lançavam vivas a Portugal. Situação que terá sido constrangedora para Cassiano, um assumido democrata que uns anos depois, em 1958, é preso pela PIDE por ser apoiante de Humberto Delgado nas “eleições” presidenciais e por ter desenhado um painel de apoio ao General. Delgado escreverá mesmo uma carta ao então Presidente insurgindo-se contra essa detenção.
Entretanto o Coliseu cresceu muito, e muito bem, melhorando a sua ligação à cidade, acolhendo grandes espectáculos que fizeram dele a grande sala de visitas da cidade do Porto. E tem sabido responder à evolução tecnológica e às novas técnicas de palco.
Mas não teve vida fácil.
Em 95, esteve para morrer e ser entregue a uma seita religiosa mas foi salvo in extremis por um movimento popular atento e mobilizado, pela Área Metropolitana do Porto, pela Secretaria de Estado da Cultura e pelos proprietários.
Deve-se a esse gesto de cidadania, a assinatura de um protocolo que lhe permitiu sobreviver e ter um novo impulso. Depois, em 1996, teve um grande incêndio mas, tenazmente, reabriu as suas portas dois anos depois.
Em 2012 foi finalmente classificado como Monumento de Interesse Público.
O Porto tem razões fundadas para estar orgulhoso deste lugar único e pela sua nova vida – agora como Coliseu Porto – continuando a sua ligação íntima às pessoas, à cidade e à autarquia.
* Texto escrito para o catálogo publicado por ocasião da exposição comemorativa dos 75 anos anos do Coliseu Porto, “O Coliseu e a Cidade: 75 anos de histórias”, apresentada no edifício dos Paços do Concelho, de 15 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.