
Mobiliário salão dos camarotes, 1941, Mário Abreu
A sala que segreda cidade
Miguel Guedes *
Auscultar um segredo, desvendar várias faces, sentir que a comoção não passou só por nós e que fez parte inteira dos outros. É um grande movimento colectivo, por vezes surdo, aquele que se exige à descoberta individual das razões da comoção. Convoca memórias e gente em catarse, parte de amanhos de novelos desfeitos com fios de muitas pontas, pedaços que somam mil arestas. Passeando um segredo, olhando-o com a visão do quarto ou da sala, a arrumar a partilha em verbos de movimento, contar quase tudo como foi sem colar os cacos. A partilha dos momentos que nos tocam não pode ser guardada num caixa de gelo como um complemento à distância, pobre, imenso de significado mas interdito à divisão, “género zero-um” de tão híbrido. Todos os quartos podem ter uma vista. A beleza de uma sala imensa é que pode ter recantos.
Uma sala cartão de visita é muito mais do que um nome impresso, pensamento estilizado e letras racionalmente seleccionadas em bold. Ainda que a nobreza da palavra possa erguer alguma sobranceria de cerimónia, a simbologia de uma sala como o Coliseu ultrapassa apresentações formais, como se o nome da sala fosse um mantra de grandeza ou reverência dificilmente ultrapassável pela pronúncia do norte.
A experiência de cidade e do Coliseu confundem-se. E por bons motivos. A geografia do território sempre permitiu que imaginasse o Coliseu no centro-do-centro do Porto, como se a baixa edificasse o seu núcleo na zona mais alta, a subir Passos Manuel. Desde criança, chegar ao Coliseu sempre foi mais do que as portas que se abriam à entrada. Avistar o Porto pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luís, descer pelos Poveiros ou alcançá-lo à vista após deambular em Santa Catarina. Ou era a urgência de sair do autocarro em passos largos na Praça da Batalha ou a ansiedade de contar os minutos de espera nas ruas adjacentes aos Aliados. Ou perceber que devia descer do Marquês ou de Fernão Magalhães sempre a convergir para o bulício. E que de Cedofeita ou de Carlos Alberto eram percursos altos e baixos que os Clérigos faziam sempre valer a pena até ao permanente assombro da Avenida. Desde criança, sempre olhei para o Coliseu como o centro da cidade, um pouco como se a cidade traçasse um círculo largo à volta do seu seio.

Caderno de encargos referente à construção e assentamento de guarnições e de cinco portas, setembro de 1941
Sendo que as suas paredes e escadas contam histórias dos encontros e desencontros na antecâmara dos espectáculos, não é necessário tirar bilhete para se compreender o cunho identitário do Coliseu. As grandes emoções são assim, permitem que se antevejam à chegada. A visão exterior, por si só, já conta. Ao longo dos anos, gerações são levadas pela mão ao circo, crescem escoltadas pelos pais em concertos, desafiam a classificação etária dos filmes, agigantam-se perante o eclético sublime até que se emancipam pela idade adulta. Podem sair sozinhas ou ir ao encontro. Um Coliseu cheio transborda para a rua quando as luzes se apagam e são milhares de pessoas que saem dispostas a transformar a vida. Excepcionando as luzes geniais, o brilho dos símbolos estabelece-se muito mais pela luz com que os vemos do que pela luz que emanam pela sua natureza. É na construção desse brilho que toda a cidade se implica e significa, enquanto entidade que é pessoa, representação das gentes, enquanto pousio trabalhado a obras do admirável. Os 75 anos do Coliseu raramente renegaram a cidade e é também por isso que as gentes da cidade sempre o guardam.
Há segredos que são públicos e notórios mas que nem por isso deixam de ser segredados. Desde o dia em abriu portas, o Coliseu tem mostrado a genética de quem o habita pela beleza da diversidade e do ecletismo. Também por isso, o território artístico do espaço se confunde com a metrópole fora de portas, sai e abraça-a, sendo quase indistinto das ruas quando a cidade se abre lá dentro ou as pessoas se dispersam pelos passeios, repletas. Com muitos segredos para contar e preciosos esqueletos no armário, a sala das salas que abarca toda a existência.
Do Coliseu do Porto quero recordar-me do futuro a que anseia porque tempos houve em que o Coliseu contava a história de um ocaso. Ninguém admite regressos ao passado como o que quase o colocou nas mãos de uma fé pelo despotismo do comprador e ganância de quem vendia. Momento em que o Porto puxa dos galões e, como tantos outros portuenses, saí à rua na maior manifestação civil pelo direito à cultura que Portugal pôde ver. A 4 de Agosto de 1995, ouvia-se “O Coliseu é nosso!” no eterno sobe e desce da Rua de Passos Manuel. Milhares de pessoas de todos os quadrantes e áreas, gente sólida como o edifício que, fechado à nossa frente, nunca permitiríamos que reabrisse portas para se perder para sempre.
A narração pessoal, em tantos casos, confunde-se com a narrativa colectiva sendo impossível nomear tudo o que vivemos lá dentro. No meu caso, com o privilégio de ter pisado o palco por diversas vezes, o vaguear curioso pelos corredores, a contemplação de uma sala que num ápice se faz cheia. Do lado de lá, a vertigem de sentir o tremor na hora marcada. Mas há tantos momentos que também fazem prova de vida do lado de cá, o lugar que é chão de madeira na plateia ou no balcão central e lateral, partilhados consoante o som e os humores. Foi no Coliseu que vi cinema com a dimensão que alguns filmes merecem. Era o tempo de “Dune”, o então mal amado de Lynch, a ganhar pontos pela grandeza do ecrã e das traduções que desafiavam a idade do meu bilhete de identidade de então. Como se não tivesse legendas. Sinto que há coisas que ficam para sempre nas nossas vidas por termos o privilégio de as vermos antes do tempo. E foi circo no tempo certo e foi o “E.T.” em dose dupla. Sentado para ver bailado a destempo e ópera em exuberância pouco discernível. Noites memoráveis de concertos como aquela de 14 de Junho em 91, com os Pixies a anteciparem “Trompe Le Monde” e com os Killing Joke, abrindo hostilidades, despedindo-se com um “thank you, goodnight” vociferado em loop. O passado fez-se de horas incontáveis em ambas as acepções.
O que é irrepetível não se replica, resolve-se pelo instante. Mas eis que dá volta atrás e faz ricochete na memória, conflui em estado puro, visceral, arrebenta de dores. O processo alquímico da arte não permitiu ainda realizar a “grande obra de todos os tempos” mas conseguiu eleger as grandes noites das nossas vidas. A metáfora da mudança de consciência. Simbolicamente, sabedoria, acto primordial, metamorfose, viver para sempre. O autoconhecimento provoca a catarse, transforma sentimentos e emoções, materializa medos, temores, fantasias, viaja para a essência. Cria uma intuição que não desaparece. E desespera para, agora, voltar ao futuro.
* Texto escrito para o catálogo publicado por ocasião da exposição comemorativa dos 75 anos anos do Coliseu Porto, “O Coliseu e a Cidade: 75 anos de histórias”, apresentada no edifício dos Paços do Concelho, de 15 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.